Universo de Memórias

terça-feira, 25 de maio de 2010

Uma Carta-Relato para a Neurologista

O dia em que observei-acompanhei.
Sem perguntas.
Não as fiz. Somente ouvi e respondi claramente e objetivamente algumas perguntas.
Segue...
E, finalmente minha mãe acorda em um domingo chuvoso, olha no relógio: são nove horas,
não sabe onde está.
Lembra que não lembra, depois ativa a memória e pensa que não tem ninguém para visitar.
Quer a casa da mãe dela.
Quer que alguém a leve.
Quer o pai dela.
Verifica a fronha do traveseiro sem abrí-la. Só apalpa para sentir a bolsa e outros cacarecos
ali misturados.
Diz que é tarde.
Depois não fala mais.
Escuta os barulhos da casa, ouve vozes conhecidas, me diz: saia daqui.
Vira o rosto para o outro lado e volta a dormir.
Uma hora depois liga a luz, coloca-se em pé, já procura coisas que perdeu(mudava os lugares de guardar).
No seu quarto liga a TV, troca repetidamente de canais, várias propagandas, desenhos,
notícias de uma menina desaparecida.
Nada lhe interessa. É como se não ouvisse nada.
Esquece de desligar a televisão.
A manhã poderia durar uma, duas, três, dez horas que não faria diferença nenhuma.
Não neste dia.
Depois de longos 37 minutos já estava vestida e pronta para sair.
Apenas sem esquecer o banho, escovar os dentes, porém sem o café da manhã, sem bom dia.
Ignorou à todos. Foi como se estivesse sozinha, com seu mundo bloqueado. E estava.
Nas mãos tinha um convite de semanas atrás, "vencido", dessas campanhas-confraternizações
afim de arrecadar fundos para a construção de uma igreja próxima à nossa casa.
Um almoço-churrasco pagos pelos participantes doadores.
Soltou de maneira tímida um sorriso ao ver a data errada do convite.
A data ela perguntou-me.
Pediu leite com arroz. Eu não tinha arroz cozido naquele horário. Ela mesma preparou e comeu aquela mistura.
Confesso:meu estômago embrulhou e tudo em mim embrulhou.
Busquei meu equilíbrio e, tenha plena certeza Dra. Elani, distanciei-me da visão de filha.
Neste dia fiz um pacto comigo mesma para apenas um olhar de análise a seu pedido.
Depois passamos em uma loja, que estava fechada, vendo o preço do presente que tinha ganho no natal.
Minutos após ela afirmava não ter ganho nada.
Fechou a cara. Não olhou nos meus olhos. Desviou, ignorou por completo.  
Espantou os esquecimentos e quis a volta para casa.
Ao entrar na sala, constatou que nossa moradia precisava de uma organização, para não dizer limpeza, urgente!
Não tinha noção que ao fazer isso estaria entrando em um mundo com fotos, objetos, cartas e tantas outras coisas perturbadoras.
Mas, esbarrar em um sapato ou sandália na porta era algo inconcebível segundo minha mãe.
Trocou de roupa(na época dividia o quarto com minha filha), abriu todos os armários, todas as gavetas, todas as bolsas, tudo que estava guardado e literalmente jogou no meio da sala, sem nenhum cuidado, sem importar-se realmente.
Trouxe uma garrafa com água tendo pouca consciência que aquilo levaria o resto da tarde de seu domingo.
Dizia:
Este vou dar. Este vou queimar. Este não quero mais. Este "não sei quem é". Este "não sei o que é".
-O que é isto Marília?
-Uma caixa de fitas com músicas italianas que o Pai te deu.
-Não lembro. Vou queimar.
E continuou...
Viu num pedaço de papel, um nome, um número de telefone, tão fácil de gravar e se perguntou(em voz alta)por que não lembrava.
De repente levantou-se e pediu-me o almoço. Já passava das 16 horas da tarde. Esquentei o risoto, frango, polenta frita e ela não mais voltou para o que estava fazendo.
Falou da irmã que estava viajando, da saudade que estava sentindo.
Detalhe: esta irmã não estava viajando.
Inclusive ligou e perguntou:
-A Alzira não veio hoje?
-Tá tudo bem?
Pois é...não deixou espaço caso aparecesse mais alguém que valesse a pena dar sinal de vida.
Recolheu-se. Não brigou. Não xingou. Não bateu em ninguém. Ausente. Totalmente ausente.

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